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Professor Seráfico

Enquanto o espólio de um é disputado como os abutres disputam a carniça apetitosa, os números da economia são festejados. Curioso é observar quanto a redução da pobreza, o consumo em crescimento e a ocupação quase plena repercutem sobre a reação dos beneficiados. Longe de acompanhar o arejamento que os números sopram na sociedade, o que se observa é a busca de arranjos e alianças destinadas a frustrar os projetos dos que respondem pelos bons resultados. Neste caso, é graças às políticas públicas que o panorama econômico e social se tem alterado. Não obstante, os que disputam o espólio reincidem no negativismo, mesmo diante da crescente percepção de que boa parte dos mais de 700.000 mortos pela covid-19 pode ser debitada à sua conta. Esse é testemunho oferecido pelas pesquisas de preferência eleitoral, cuja frequência aumenta todo dia, como se questões urgentes e inadiáveis já estivessem resolvidas ou, ao menos, devidamente equacionadas. Particularmente quanto à zona franca de Manaus, não houve qualquer outro momento, desde 1967, em que o faturamento e a ocupação dos postos de trabalho fossem tão alvissareiros. É dos que detêm a propriedade do capital lá instalado que escorre a maior parte da dinheirama responsável pela eleição dos chamados representantes do povo. Isso não tem levado, todavia, a qualquer alteração na conduta das lideranças empresariais, reincidentes em práticas condenadas por elas mesmas, segundo o hábito dos políticos que os acumuladores criticam e apontam. Ao contrário, os maiores beneficiários dos avanços parecem condenados eternamente à cumplicidade com os que tratam apenas de obter um mandato em geral lesivo aos interesses do povo. Essa observação, no entanto, vale para todo o Brasil, eis que faz parte do ideário da elite brasileira.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/nossas-elites

Publicado: 06/12/2025

A Lei da Ficha Limpa, que o Congresso acaba de amputar, significou expressivo avanço no combate aos maus costumes, responsáveis pela desigualdade e a corrupção que a tem embalado. O esforço por provocar retrocessos na busca do aprofundamento do Estado Democrático de Direito, se foi repelido pela mobilização social que impediu a aprovação da Lei de Proteção à Bandidagem, não foi capaz de deter as interpretações malévolas que levam a comemorações estapafúrdias, quando mais de 13 dezenas de pessoas são mortas por forças policiais. Não traz qualquer surpresa ou inovação o fato de os agentes pagos pelo contribuinte terem assassinado tal número de seres humanos Muitos deles, já presos e, portanto, colocados sob a custódia do Estado. Não se trata de proteger ou justificar os crimes atribuídos a muitos dos que perderam a vida. No caso, análise minimamente razoável haveria de levar em conta, além da circunstância de que parte dos assassinados estava dominada e presa pelos agentes de segurança, não ter sido boa parte dos mortos condenados pelos crimes que lhes são atribuídos. Com isso, parece transferida do Poder Judiciário a autoridade para dizer quem deve ser considerado bandido, quem deve ser poupado a pena que todo o ordenamento jurídico brasileiro repudia. A pena de morte, mesmo quando atende a mandamento legal, tem sido objeto de restrição na maioria dos países. Naqueles em que a todo instante se invoca o nome de Deus e se proclama amor a Cristo, menos admissível é testemunhar cenas como as vistas e vividas em 28 de outubro, nos complexos da Penha e do Alemão. Depois, ignorar propositalmente que o ataque e o assassínio em massa não acabarão com o tráfico de drogas só se presta a manter desembaraçados os que lucram com os negócios vinculados ao tráfico. É falso, portanto, o objetivo que se diz perseguido por ação tão ignominiosa. Punam-se todos os que, na favela ou nos gabinetes refrigerados estão de alguma forma vinculados a tais atividades criminosas. Sem reivindicar que agentes pagos pelo poder público tentem impor-se ao próprio Poder Judiciário, expressando por ação (a matança de seres humanos) e a consequente punição (a morte), que jamais fará a coisa julgada. Deem-se ouvidos ao devido, processo legal, e- aí sim! - estaremos honrando o Estado Democrático de Direito. Todos, nos pontos de venda e distribuição de drogas quanto nos gabinetes de onde saem os recursos que financiam tais atividades, são iguais perante a Lei. É o que diz a Constituição que todos temos o dever de observar.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/em-todos-os-sentidos-espúria

Publicado: 09/11/2025

Marcelo Seráfico

e José Alcimar*

 

Nos EUA como no Brasil, o debate público, quando ocorre, não está assentado em fatos. Predomina a lógica das "narrativas", entendidas como fragmentos de verdade absoluta, não como interpretações constituintes da própria realidade. A realidade, permanentemente atropelada, é o que menos conta nesse jogo de simulação e espetáculo. Afinal, e ao pensar com Heidegger, que coisa habita essa linguagem, que o insigne pensador alemão caracterizava como morada do ser?

Na hora em que as interpretações se encerram em si mesmas, elas se tornam doutrinas, não guardando uma gota de compromisso com a compreensão do oceano que lhes deu origem. Nenhuma dúvida persiste, cabendo apenas encontrar uma sequência de argumentos lógicos ou ilógicos que satisfaça a confirmação do que se quer afirmar. Quando refratário à dúvida e à crítica, o conhecimento não pode “aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame”, como exigia Kant.

Essa atitude já foi, e talvez ainda seja, comum à parte da esquerda, especialmente do pseudomarxismo, que de fato é um positivismo que substitui a dialética pela mecânica na observação da história. Dialética e positivismo não se banham no mesmo rio. A diferença, contudo, entre essa "esquerda" e as direitas, a extrema em particular, é que para esta a história simplesmente não importa. Como não importa, no campo político o desafio deles não é a "educação política popular", mas sim a "funcionalização política da ignorância", sem o que não sobrevive o mal chamado “pobre de direita”, na verdade, pobre de direitos.

Ignorar é desconhecer, não saber. Para a extrema direita, a ignorância é um pressuposto necessário à dominação. A própria ideia de cidadania, por exemplo, não faz nenhum sentido, pois ela implica uma relação consciente dos indivíduos com o Estado, uma relação pautada por deveres e direitos cujo fim seria, de um lado, conter os conflitos da sociedade de classes e, de outro, pavimentar o caminho rumo à igualdade e liberdade. Isso, evidentemente, numa interpretação liberal e funcionalista, o que, nesses tempos de afronta à cultura, de falsificação da história e de destruição da memória até indicaria um patamar superior de consciência. A globalização do raso se impõe.

Queremos crer que Durkheim concordaria com esse argumento. Como sabemos, ele, apesar de um reformador, era um conservador. Hoje, seria visto como comunista e poderia estar filiado ao PT ou ao partido Democrata dos EUA como um de seus membros mais radicais. A "lógica das narrativas" desfez a unidade de referência epistemológica das visões de mundo. Ao assumir as narrativas como verdades absolutas, as pessoas se fecharam em dois universos superpostos, ambos avessos a qualquer proximidade com a história.

O primeiro deles são as "bolhas" produzidas pelas plataformas de virtualização das relações sociais. Nelas, reúnem-se, forjam-se e retroalimentam-se ideologicamente os "grupos de pertencimento" que compartilham "identidades". O segundo desses universos é o do "indivíduo narcísico", aquele para o qual sua própria subjetividade e as experiências que a constituem equivalem à totalidade do real. Sua visão de mundo, se fosse rigorosa, poderia ser chamada de "individualismo metodológico"; não sendo, é puro e simples solipsismo. Talvez pior, um solipsismo heteronomizado, carente de subjetivação.

A superposição desses dois universos de sociabilidade e de construção social das subjetividades tem um resultado paradoxal: dá origem a grupos de sujeitos isolados cuja unidade político-ideológico-afetiva é a "vontade de impotência", de conferir a terceiros a salvação do que sentem como sofrimento, desamparo, isolamento, angústia. Um tipo de desespero descategorizado, desprovido de mediações.

Não estamos falando, portanto, de um "tipo tradicional de ignorância", aquela que decorre da falta de acesso à informação e à educação. Estamos falando da ignorância como projeto de dominação política, a ignorância como perspectiva pedagógica e pressuposto político para a emergência e afirmação de instituições autoritárias. Não há dado estatístico ou evidência histórica suficiente para demover os extremistas de direita à frente do Estado e na sociedade civil de que o que dizem não corresponde à realidade. Presidida pela dissonância cognitiva, a mentalidade extremista foi programada para rejeitar tudo que excede sua visão programada, por mais objetiva que seja a realidade.

A "realidade" que lhes interessa é apenas e exclusivamente a dos que vivem aprisionados nas "bolhas de idiotização", vistas estas como o espaço de socialização privilegiado para a difusão do projeto e o encaminhamento do processo pedagógico. Infelizmente, essa realidade também é verdadeira para os ditos liberais, particularmente nos EUA. A diferença, porém, é que para eles os "inimigos" podem protestar. Mas objetivamente, oprimem, como os de extrema direita, cidadãos de dentro e de fora do país. A barbaridade é a mesma, porém, dissimulada em uma série de contenções.

Estamos de acordo, por tudo isso, que parte da estupefação quanto ao momento histórico que vivemos, vem da frustração de uma expectativa deixada pelo positivismo e suas várias expressões à direita e à esquerda do espectro político: a frustração da possibilidade de progresso como sinônimo de igualdade e liberdade na ordem capitalista.

Ao invés disso, vemos alargarem-se as fronteiras do Estado de exceção. Quem não era alcançado por ele e esperava não ser, agora é. A luta de classes numa situação como essa exige uma imaginação política ainda em gestação. No passado, ela levou à criação de associações, sindicatos e partidos, muitos operando em escala internacional. E hoje? Como recuperar luta de classes, seja como fato objetivo que se impõe, seja como leitura epistêmica e método de objetivação da sociedade de classes, seja como estratégia política?

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*(Professores dos Departamentos de Ciências Sociais e de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas)

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/sob-o-império-das-narrativas-e-da-pedagogia-da-ignorância

Publicado: 28/09/2025

Desprezem-me os que se dizem realistas. Presos à objetividade que impede seus sonhos e os faz apegados à experiência consagradora da rotina, negam a tênue linha com que é traçado o destino da humanidade – ou seremos pessimistas, ou nos orientará o otimismo. Fossem Cervantes e sua mais importante e humana criação inspirados pelo pessimismo, fruto da negação e do desencanto, o escritor manchego já teria soçobrado. Com ele, a grande viagem de que Sagres terá sido apenas o ponto de partida. Nós, cidadãos, primeiro do Novo Mundo, depois do Planeta inteiro, não podemos ater-nos ao naufrágio anunciado. Não é de boias que precisamos, mas de sonhar cada vez mais. Com todas as nossas energias, porque o futuro está à frente, e qualquer hesitação ou vacilo nos fará andar para trás. O que mais temos perdido, nos momentos decisivos e cruciais da trajetória humana, é a capacidade de olhar à frente, mantidos pela ilusão de que o ontem será (?) melhor que o amanhã. Mesmo quando levamos a tecnologia a tão ousados patamares, talvez inebriados pela falsa promessa de virarmos deuses, esquecemos de que nada obstará o progresso – da Ciência, da Vida humana, da Sociedade. É do homem e de seu senso de coletividade, portanto, que resultará o futuro. Se o passado não pode ser mais que fonte de sabedoria e inspiração, a impossibilidade de fazê-lo não impede a construção de um futuro melhor. Tal construção, fundamentada no que o ser humano tem de melhor, é a única saída para o dilema eterno – a Vida absorvendo a morte, sem amesquinhá-la; apenas tomando o momento derradeiro como ponto final de trajetória individual. Nem por isso a Vida se extinguirá. Antes, podem anunciar-se, a cada morte, novos horizontes, sonhos renovados, lições de que a humanidade não se tem que envergonhar; antes, terá marcado seu desenvolvimento pela ação dos que, sobreviventes, têm os olhos voltados para o devir, jamais serão escravos do que passou. Se aos pessimistas o sonho parece transgressão imperdoável, aos otimistas cabe a virtude da Esperança. É esse o único alimento capaz de levar-nos a um futuro menos inglório.

Manaus, 19 de setembro de 2025.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/otimismo-esperança-e-futuro

Publicado: 20/09/2025

Marcelo Seráfico (Professor do Dpto. de Ciências Sociais da UFAM)

Após as quase 13 horas de proclamação de seu voto no julgamento de réus VIPs, o ministro Luiz Fux, do STF, deixou uma dúvida no ar: o que disse no decorrer de meio dia faz algum sentido?
Juristas e advogados sérios, até o presente momento, não encontraram nem o pé nem a cabeça do suposto corpo jurídico desenhado por Sua Excelência, o juiz.
Jornalistas sérios tampouco puderam propor a suas redações um lead suficientemente lógico, capaz de sintetizar a proposital confusão. 
Analistas acostumados a monitorar a política nacional, parecem ter decifrado, senão o sentido, a estratégia argumentativa de Fux: ao invés de olhar a acusação do MPF como um todo que narra um processo ao longo do qual se desenvolveu um crime, julgou-a como se fosse um agregado de fragmentos desconexos da realidade.
Talvez aí esteja mesmo a ponta do novelo (em)bolado por Fux.
Longe de oferecer um voto rigoroso, atendendo a critérios jurídicos ou mesmo às decisões relativas ao 8 de janeiro que ele mesmo vinha tomando, Sua Excelência produziu uma peça de propaganda endereçada à extrema-direita transnacional. E 
Tal qual Yves Gandra ofereceu aos neofascistas o "fundamento jurídico" para o golpe de Estado, ao fazer uma interpretação delirante do artigo 142 da Constituição Federal, Fux sacrifica a realidade em nome de um projeto político autoritário.
Não bastasse isso, subliminarmente, Fux acusa a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o ministro Alexandre de Moraes de  produzir provas que caibam numa narrativa pré-formulada. Isto é, ao invés dos fatos indutivamente levarem à reconstrução empírica da realidade, as instituições do Estado brasileiro teriam dedutivamentesselecionado os fatos convenientes à sua "narrativa".
Fux, na ânsia de prestar serviço (?!), esqueceu-se de que a unir indução e dedução no processo de reconstrução da realidade estão, empiricamente, o processo histórico e, teoricamente, as hipóteses.
Qual a hipótese de Fux? A de que não existe história e a realidade pode ser vista como uma montoeira de fatos desconexos aos quais se pode atribuir o sentido que se deseja e quer.
O que Fux leu em 13 horas foi uma emblemática e ousada peça de propaganda política.
Devemos, portanto, nos indagar: o que o ministro revela para a sociedade?
Ele nosbdiz que o golpe de Estado ganhou mais uma cadeira na Suprema Corte do país. 
Cabe, a esse propósito, reconhecer que nem mesmo os ministros nomeados para o STF pelo ex-presidente e agora réu, Jair Bolsonaro, vêm desempenhando esse papel... não com a paixão de Fux. Logo, o "mito" e seus comparsas têm o benefício de um advogado de defesa dentro do STF. 
Por isso, talvez as pessoas mais perplexas diante de Fux sejam os advogados dos réus. Afinal, todos reconheceram a tentativa de golpe, buscando, para livrar seus representados de culpa, desvinculá-los dos atos atentatórios ao Estado democrático de direito.
Com sangue nos olhos, saliva na boca e sem pudor no espírito, o ministro nomeado pela ex-Presidente Dilma Roussef se vestiu de verde e amarelo, empunhou as bandeiras dos EUA e Israel, e foi ao plenário da Primera Turma gritar: "Eu autorizo!!"
Sim, Fux faz sentido.

Publicado: 12/09/2025

Mais que oportuno, justo e contundente, o editorial d’ O Estado de São Paulo de ontem, quinta-feira, ecoa o que a opinião pública, os bons cidadãos e os políticos sérios ainda em atividade reivindicam. Além de juridicamente teratológica e moralmente inaceitável, como diz em seu título o texto do jornalão dos Mesquita, a anistia pretendida também agride todo e qualquer cidadão que coloque o interesse coletivo acima dos apetites e às más intenções dos demais contemporâneos. Lembra bem o diário paulista, quando menciona a repetida concessão de anistia a indivíduos que entraram pela porta dos fundos da História, na tentativa de ferir a democracia e atender a interesses chamados pelo editorialista de espúrios. Dos que me lembre, pelo menos dois oficiais da Força Aérea – major Veloso e capitão Lameirão – foram contemplados pelo instituto, não por que, como os estudantes, militares e políticos presos, cassados ou exonerados do serviço público, tenham resistido em vão (?) ao golpe de 1964. A esses não foi dada a oportunidade de defender-se, porque pensar no devido processo legal jamais constou ou constará do vocabulário, da experiência e da ética dos golpistas – ontem, hoje e sempre. Nem lembremos o destino dado a tantos outros dos resistentes, alguns dos quais sequer até hoje têm identificado os locais onde foram depositados seus restos, produto ignóbil e perverso da tortura e dos assassinatos até hoje por esclarecer. Limitemo-nos a lembrar apenas que no rol das acusações que colocaram agora (fato inédito) altas autoridades civis e militares e seus sequazes no banco dos réus, está o planejamento do assassinato do Presidente e do vice-Presidente da república e de um membro da mais alta corte de Justiça do País. Para compensar não terem sido assassinadas as 30.000 pessoas que o denunciado líder da tramoia frustrada no início de 2023 desejava. Também se torna quase supérfluo, tão conhecida é pela sociedade brasileira, acrescentar que os atos terroristas praticados em 08 de janeiro de 2023, para alguns dos seus participantes, não é mais que a repetição de quase toda uma vida ligada a práticas lesivas à sociedade. A crença de que a violência é a resposta a ser dada aos problemas sociais que infernizam a vida da maioria dos brasileiros, todavia, resulta em muito da absurda tolerância com que se tem tratado os delinquentes cuja trajetória recomendaria punição, não qualquer tipo de perdão, chame-se ele anistia ou indulto. Isso, com outras palavras, também é dito pelo editorial d’ O Estado de São Paulo. Cumpre apenas aditar ao memorável texto, o fato de que o governador de São Paulo busca parceria exatamente onde proliferam e prosperam os atentados contra tudo quanto representa respeito ao Estado Democrático de Direito e sua defesa. A anistia é, portanto, uma das peças do mosaico em que se inserem o enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa, as emendas secretas e outros crimes com que a maioria dos congressistas pretende constituir-se em uma casta acima de qualquer Lei. Mesmo a Constituição. A melhor blindagem que o Poder Judiciário pode produzir, para paralisar a ação golpista e antidemocrática ora instalada no Legislativo e a única que protegerá os brasileiros e a democracia é encarcerar, finalizado o devido processo legal, é pôr todos os condenados nas penitenciárias. Isso talvez os ponha a refletir e concluir que a morte da democracia sempre será objetivo rejeitado pela maioria dos brasileiros.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/brinde-aos-que-se-querem-blindar

Publicado: 07/09/2025

                                                                                                           Marcelo Seráfico*

 

Estamos num momento dificílimo, decisivo, para a humanidade.

Em outros tempos havia, ou tínhamos a ilusão de haver, alternativas à ordem. Hoje, a sensação é a de que ou essa ordem é aprofundada ou a humanidade destruída.

Ocorre que a destruição, a catástrofe, o abismo, é o produto dessa ordem.

Eu lembro da passagem do Manifesto em que Marx e Engels advertem, premonitoriamente: se não fossem superadas, as relações de produção capitalistas nos levariam à autodestruição.

Há anos a teoria do materialismo histórico-dialético foi abandonada como base para a interpretação da realidade. Ela, que nunca foi dominante, tornou-se marginal e as novas gerações de pensadores vêm sendo formadas num ambiente "liberal-dogmático", no qual, paradoxalmente, a crítica precisa estar contida nas fronteiras de seu objeto. Ideias como as de reforma e revolução são usadas, desde que uma e outra estejam a serviço da reprodução do sistema que, sem ela, se revela insustentável.

Partidos políticos, universidades e mesmo movimentos sociais "aderiram" à tese e, ao invés se refletirmos e lutarmos pela superação do capitalismo, engajamo-nos em lutas limitadas à mudança das políticas públicas ou ao embuste do "empreendedorismo".

Os que ainda falam de socialismo e comunismo são marginalizados ou tornados "terroristas" ou, nas universidades, vistos como anacrônicos.

A vitória ideológica do neoliberalismo foi aterradora!!!

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*Marcelo Seráfico é sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e comentarista da Rádio BandNews/Difusora.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/o-fim-da-história-chegou

Publicado: 28/06/2025

Se a mistura de nacionalidades pode dizer alguma coisa a respeito das tendências das pessoas, muito haverá que observar no desempenho do Papa Leão XIV. Robert Francis Prevost nasceu em Chicago, Estados Unidos da América do Norte, tendo ascendência, pelo lado paterno, italiana e francesa; de sua mãe, a tem espanhola. Ele mesmo tem outra nacionalidade, obtida voluntariamente – é peruano, e só um terço dos 69 nove anos em que sua vida é contada, passou-o no país em que nasceu. Talvez o Vaticano nunca tenha abrigado em seu gabinete principal alguém tão mais próximo da universalidade que o sucessor de Francisco. Por mais que haja os que se dizem refratários à assunção de valores, costumes e hábitos que não vêm da origem, não seria isso o suficiente para anular a eventual percepção mais ampla dos fenômenos, devida à diversidade de influências. Ainda mais, quando o observador conquistou os direitos de cidadania de outro país, que é disso que trata a obtenção do status de peruano, porque o quis. Um ato da vontade, portanto, não fosse a vontade uma resposta nem sempre afeita aos cuidados que todos devemos à natureza. Esse não é o caso do até anteontem cardeal Prevost. Para facilitar sua missão profissional, o sacerdote nascido na terra de Tio Sam optou por integrar-se mais intimamente com os fiéis a que dedicou seu trabalho religioso. No mínimo, podemos pensar em que ele se sente um igual a todo cidadão que os deveres profissionais põem sob sua orientação. Sentiu-se peruano, testemunha durante muito tempo dos problemas e sofrimento experimentados pelo rebanho que lhe tocava conduzir. Por isso, fez-se um igual. Todavia, imaginar que sua opção repousou na simples facilitação da ação missionária é uma percepção incompleta da conduta humana. Sobretudo, se levadas em conta as relações familiares do novo Papa, nas quais se registra, pelo menos, a presença de valores, línguas, hábitos e percepções originárias de várias fontes nacionais. Isso - o futuro o dirá -, permite prever o ecumenismo e o universalismo que deverão alicerçar a condução da Igreja sob Leão XIV. Guindado ao posto pelo seu antecessor, e chamado a viver mais próximo de Francisco, o cardeal Prevost não terá escolhido (e disso ele já deu contas ao rebanho) o nome de Leão XIII, o Papa que abriu a Igreja para o Mundo e a fez mais humana, por acidente. A encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas) tem a assinatura do antigo cardeal cujo nome é seguido pelo novo Papa. Quem sabe agora, mais de 2000 anos após, chegaremos mais próximos do homo novus pretendido pelo Crucificado?

fonte:https:https://www.nagavea.com.br/post/fontes-relações-e-inspirações

Publicado: 18/05/2025

O cardeal Prevost, norte-americano da ordem dos agostinianos, é o sucessor de Francisco. Roberto Francis Prevost viveu no Peru, em próxima relação com a pobreza daquele país. Quanto ao nome, ele escolheu identificar-se com o nome do autor da encíclica Rerum Novarum, documento básico da renovação da Igreja.

fonte:https:https://www.nagavea.com.br/post/leão-xiv

Publicado: 11/05/2025

Aumenta o número de analistas, comentaristas, especialistas em Economia que se mostram perplexos com as decisões de Donald Trump. Todos são incapazes de encontrar a lógica dessas decisões, ainda que boa parte deles ache que elas têm um propósito. Geralmente, a hipótese vai na direção dos interesses egoísticos, e nem sempre lícitos, do inquilino da Casa Branca. Talvez alcance o nível da generalização a suspeita de que a América Grande, tão repetida no discurso do Presidente norte-americano entra em choque com o desastre que ele mesmo provoca na economia de seu país. Isso, inclusive, deu razão aos que veem Trump como o personagem de ficção Nikita, mandado da União Soviética para os Estados Unidos da América do Norte. Para esse espião, o american dream consistiria em destruir o capitalismo por dentro. Quando se analisa com mais cuidado a atuação de Trump, não há como excluir certas variáveis aparentemente afastadas das considerações mais frequentemente divulgadas. Uma delas, o reconhecimento, por Trump e as elites de seu país, do processo de desmanche do império mais poderoso da Idade Contemporânea. Outra, a ameaça que o BRICS representa, sobretudo quando traz para a pauta das discussões a criação de uma nova moeda, concorrente do dólar. A Trump, vendo o mundo por ele sonhado desmanchar-se no ar, na terra e na água, como tudo o que é sólido, barco perdido deve ser bem carregado. O maior perigo está no botão detonador da guerra nuclear, ao alcance de suas mãos. Nagasaki e Hiroshima não podem ser esquecidas.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/o-barco-e-sua-carga

Publicado: 06/04/2025

Início referindo-me, primeiro, às exceções. Constituem-na aqueles poucos estudiosos, políticos, militantes, lideranças, jornalistas que admitem a possibilidade de mudar profundamente a realidade social do Brasil. Depois, manifesto meu cansaço com a impermeabilidade das elites brasileiras a qualquer ideia ou proposta que atinja ao menos parcialmente, a desigualdade social. Limito-me a mencionar apenas um exemplo, a rejeição do projeto que pretendia promover a taxação das grandes fortunas, no Congresso Nacional. Algo quase concomitante com a identificação de recorrente escassez de recursos públicos à altura de financiar programas que, em outros países, contam com volume substancial, tantas vezes de exclusiva responsabilidade do Erário. Isso, quando todos apontam o dedo para a decadente qualidade dos serviços públicos de saúde, educação, alimentação, segurança, habilitação, saneamento e... Aí, o foco é sempre posto na remuneração dos servidores públicos, como se o exagero remuneratório constituísse a regra, não a exceção. Neste particular aspecto, vê-se, não obstante o esforço por oculta-lo, o interesse em reduzir o tamanho do estado. E, à frente, a quase certa destinação dos recursos eventualmente poupados, para os gulosos cofres privados. Neste caso, os setores empenhados na redução do aparelho burocrático nacional sequer atinam com a qualidade dos serviços e quanto essa circunstância tem a ver com as más condições de trabalho, a deterioração de instalações e desatualização de equipamentos, a injustiça remuneratória etc. Há certa lógica nessa posição, diante do fato de que as elites têm como pagar os altos preços cobrados por hospitais, escolas, unidades residenciais em bairros e condomínios bem servidos e agências de segurança residencial e patrimonial. Sem dar atenção, sequer, para outro fato nada excepcional, qual seja a concessão de favores chamados incentivos fiscais, de toda ordem a esses segmentos. Da injeção de recursos provenientes de agências oficiais, dos subsídios conferidos a iniciativas que quase não contam com expressiva contribuição financeira privada, até o perdão de dívidas, total ou parcialmente, contraídas por esses beneficiários junto ao poder público. Sem sequer serem impostas restrições àqueles inadimplentes, além de práticas conhecidas e nem por isso ausentes da justa repressão e punição. Sonegação e corrupção ativa são algumas dessas práticas, tão evidentes como propositalmente afastadas da mesa da,quase totalidade dos debates, onde quer que eles ocorram. A negação de uma alternativa, portanto, inclui-se no cardápio negacionista, transformado em mantra e dogma. A tal ponto, que leva à contradição fundamental: o livre arbítrio, aquele que trata da vontade em seus níveis individual e coletivo, não vale, sempre que enfrentar a suposta força do deus mercado parece impossível. Junto com esse dogma, caminha a dúvida sobre a inteligência dos animais ditos superiores.

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/superioridade-a-confirmar

Publicado: 02/03/2025

Buscar entender a atual conjuntura mundial e apreciar as decisões e bravatas de Donald Trump, como se o cenário fosse igual ao da fase anterior da guerra fria, a globalização fosse uma tendência em baixa e o BRICs inexistisse, é despropositado. Isso até pode interessar ao Presidente dos Estados Unidos da América do Norte, cujas dificuldades tendem a crescer, E não, exatamente, porque haja má vontade dos outros países. Outros, imperadores ou pretensos imperadores, passaram por experiência semelhante, ao longo da História. Não há exceção quanto ao fracasso das tentativas de manterem seu domínio sobre extensos territórios e suas respectivas populações. Também é a mestra da Vida (como dela dizia Cícero, I a.C.) quem nos ensina. Há muito se diz que a grande nação do Norte do continente não tem conseguido resistir à pressão de países que não rezam pela cartilha de Monroe, cuja doutrina alimentou a arrogância e a belicosidade dos governantes que se vêm sucedendo, para além do rio Grande. Da palavra de ordem imperial, enunciada em 1823 - a América para os americanos -, republicanos e democratas, indistintamente, não se puseram no Mundo de forma diferente. A queda do muro de Berlim, e logo após, a implosão da União Soviética, saudada com estrépito pelo chamado Ocidente, trouxe consequências, algumas boas, outras, más, em escala global. Uma delas, o abandono da guerra fria, que impediu - nem sempre por boas razões - a eclosão da terceira guerra mundial. Outro fenômeno impulsionado pelo esgarçamento das fronteiras entre países, em que o tráfego veloz dos capitais é marcante, foi a crescente globalização da economia. E de tudo quanto costuma acompanha-la. Também o empenho em manter conflitos internos nos países de sua área de influência, pressionados pelo complexo industrial-militar identificado pelo general Dwight Eisenhower, desviou os Estados Unidos da América do Norte do caminho que vinha trilhando até então. As sucessivas crises que afetaram o país do descendente de imigrantes Trump devem-se, em grande medida, à distração de sucessivos governos. A tal ponto, que a dívida dos Estados Unidos da América do Norte é, hoje, a maior de quantas registram os demais países. É a maior dívida pública (US$ 36 trilhões, em 17-01-2025), a que se seguem as do Reino Unido, da França e da Alemanha. Todas, nações capitalistas e ocidentais. Resumindo: as preocupações de Trump e as bravatas de que ele tem recuado repousam em fatos alimentados pelo propósito imperialista da nação que ele agora volta a presidir. Nem precisa que se diga ser o BRICs outra pedra no sapato do Presidente norte-americano. Se a dor ensina a gemer, não é verdade menor dizer que a dor também leva à insanidade. Já pensaram todos os que se preocupam com o destino da humanidade e do Planeta, o que é a dor, quando ela dói em quem pode apertar um botão capaz de extinguir a Terra?

fonte:https://https://www.nagavea.com.br/post/o-inimigo-da-humanidade-e-suas-razões

Publicado: 06/02/2025

Mesmo sendo uma espécie de capitalismo, o capitalismo de estado, é da China que têm vindo ideias e projetos que podem reduzir o ímpeto e a voracidade do capitalismo, dito selvagem por redundância. Cientistas e pesquisadores chineses entregam-se, agora, a projeto que fornecerá energia solar capaz de abastecer todo o Planeta. A instalação de usinas no espaço captaria a energia que vem do sol, correspondendo a toda a reserva de petróleo contida na Terra. Problemas na transmissão são os que mais preocupam, atualmente, os cientistas, pesquisadores e governantes daquele país. Em 2035 a usina estará funcionando, segundo o esperado. O anúncio vem, quando é divulgada uma resposta de Jimmy Carter, em que é dada ênfase às relações do governo norte-americano com o governo da China. O Ex-Presidente morto aos 100 anos trabalhou pela paz, a ponto de ser laureado com o Prêmio Nobel. Trump, ninguém ignora, empenha-se em guerra. Contra tudo e contra todos

fonte:https://www.nagavea.com.br/post/mais-uma-da-china

Publicado: 18/01/2025

Nasce o ano. No saco de esperanças desprendido do trenó imaginário amarram-se em feroz disputa sonhos mágoas ressentimentos frustrações...

fonte:  https://www.nagavea.com.br/camarote

Publicado: 02/01/2025

Sem surpresa

A cada nova notícia sobre o relatório ontem enviado pela Polícia Federal ao STF, confirmam-se suspeitas divulgadas neste blog. A principal delas, a de que a atuação do ex-Presidente da República preencheria todo um extenso curso de Direito Penal. Agora, 884 páginas contêm tópicos do programa desse curso, com a vantagem de acrescentar à bibliografia costumeira em documentos pedagógicos que tais, a própria substância factual dos assuntos tratados. Não há, contudo, a menor razão para surpresa. Pelo menos nas últimas quatro décadas, o que se sabe da vida do principal indiciado sugere concluir que de onde se pode esperar, daí algo virá. A cada fase de sua vida de aventuras, bravatas e agressões à democracia e ao sentimento humanitário, o articulador e potencial beneficiário do frustrado golpe de Estado mostrou-se inovador. Tanto, que é o mais amplo que se pode imaginar o rol de atos ilícitos de que se recheia o curso de Direito Penal anteriormente mencionado. Desde o planejamento da explosão do sistema de abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro até as revelações trazidas ao conhecimento público esta semana, somaram-se outros crimes. Nem todos dirigidos ao mesmo objeto, mas sempre tendo o objetivo comum: a manutenção no poder. Ataques terroristas contra as sedes dos poderes constituídos; depredação de bens do patrimônio público; rachadinhas de dinheiro público; espionagem e rastreamento de inimigos selecionados; apropriação, resgate com recursos do Erário e tráfico de jóias; articulação e comando de organização criminosa - são alguns dos tópicos descritos nas leis penais, relacionados à demeritória vida da súcia a que o Supremo Tribunal Federal dará o destino merecido.

fonte:  https://www.nagavea.com.br/post/sem-surpresa

Publicado: 24/11/2024

Falta-me saber

Sei pouco sobre Economia, quase o mesmo que pensam saber muitos dos que passaram pelo curso de formação desses importantes e indispensáveis profissionais. Diferente deles, advirto do equívoco cometido os que me têm por colega de Celso Furtado, Pedro Malan ou Roberto Simonsen. Ou de Adam Smith, Piketty e Hyeck. Não arrisco incursionar em terreno que mal conheço, a despeito de ter frequentado curso da antiga CEPAL. Além de outros, na área econômica. Conhecidos os meus limites, a ignorância quanto aos números sobretudo, sou tomado de imensa perplexidade, quando defronte de contradições produzidas mais na mente dos ditos estudiosos, que na realidade observada. Impacta-me, em especial, o que meus olhos veem, os ouvidos escutam, o paladar saboreia, o tato capta e as narinas aspiram. Desse contato pessoal, cotidiano, impositivo, colho o material que minha mente processa. E registra, em memória até aqui preservada. Vez por outra, cometo a imprudência de levar a público o juízo feito à base da realidade percebida, com a ajuda da leitura - ponham leitura, nisso! - de autores que pensam com a cabeça. Quase sempre, desprezo a leitura feita de obras elaboradas no estômago, fígado e intestinos. Nada recomendo, a propósito dessa escolha. Tenho a minha e por ela respondo. Vem daí minha perplexidade, ao ler ou ouvir o debate sobre as taxas de juros. Enquanto alguns países que se dizem ricos, mas têm dívida superior à riqueza ostentada baixam, reivindica a elite brasileira o aumento de tais taxas. Há os que, lá fora, alegam a necessidade de combater o desemprego e retomar o desenvolvimento. Aqui, reclama-se da desindustrialização e medidas desenvolvimentistas são condenadas. Critica-se a falta de investimentos, ao mesmo tempo promovendo crescente acumulação da riqueza, com o constrangimento dos que mal ganham o necessário a padrões indignos de sobrevivência. Socorram-me os sábios em Economia!

​fonte: https://www.nagavea.com.br/post/falta-me-saber

Publicado: 27/09/2024

A temperatura da vingança

Desde a infância ouço dizer que vingança é prato para ser comido frio. Quando há destempero e pressa do ofendido, este acaba beneficiando o agressor e agravando sua própria situação. A ação de vingança, portanto, varia segundo o grau de percepção do que se quer vingar. Não foi à toa que Dalva de Oliveira interpretou composição destinada a responder a Herivelto Martins, após ter cantado tantas canções inesquecíveis da música popular brasileira. Errei, sim e Tudo acabado entre nós  ainda frequentam meus ouvidos, surdas à perda auditiva ganha nos últimos anos. Porque me lembro de fatos ocorridos quando eu mal entrara no curso primário, hoje integrado pelos quatro primeiros anos da educação básica? Por uma resposta simples e sábia, que só as crianças sabem dar. Desta vez, foi Gael, um sobrinho-neto, quem a deu. Feito o relato da agressão sofrida na escola, a mãe do moleque perguntou: o que você fez, bateu nele? Calmo e sábio! Gael respondeu: não, só amanhã. Mais não disse, nem lhe foi perguntado. Estou quase certo de que, no dia seguinte, o menino já esquecera os fatos da véspera. E seu dia escolar não permitiu instalar-se nos escondidos daquela alma infantil o sentimento que espalha guerra, mundo afora. Quase esqueço de dizer: refiro-me à composição de Lupicinio Rodrigues, Vingança, de 1952.

Autor Professor Seráfico

Publicado: 18/08/2024

Máquina mágica

O garotinho (teria sete anos presumíveis) entrou na sala, ofegante. Descobria-se nele, sem palavra que o dissesse, a ansiedade causada pela perplexidade que o levara ali. Meteu-se no meio do grupo, interrompendo a visita àquela sala do museu de tecnologia. Não se preocupou em falar baixinho. A ansiedade não o permitiria. Juntou-se ao pai, puxando-o pela beira do paletó. Vem ver, pai! Achei uma maquininha que tu nem imaginas. O guia interrompeu a caminhada pela ampla sala, em que as últimas novidades da eletrônica eram apresentadas. Sob os olhares encantados dos visitantes. Aos que estavam reunidos ali interessava, então, saber da descoberta do menino. Voltariam depois para concluir a visita que os encantava. E, quase correndo, todos acompanharam a criança. O guia não se fez de rogado. Foi junto. Não demorou, nem foi além de escassos metros, 50 no máximo, o deslocamento do grupo. A partir daí, conduzido por uma criança vizinha do êxtase. O êxtase da descoberta! Olha aqui, papai! E todos voltaram olhos esbugalhados pela curiosidade. Na direção de uma antiga máquina datilográfica portátil. Se era Hermes, Remington, Lettera - a ninguém interessou saber. Fez-se o silêncio, maior ainda, quando o menino falou: vê, pai, a gente escreve e esta maquininha vai imprimindo. Não precisa mandar para outra máquina, o papel sai pronto. Não é maravilhoso? Os adultos saíram dali cheio de perguntas. E quase se desinteressaram por voltar à sala em que admiravam os mais recentes avanços tecnológicos. O guia não pode dispensa-los. Só depois o pai do menino foi buscá-lo no local de sua importante descoberta.

Autor Professor Seráfico

Publicado: 30/06/2024

Escada  

Impossível sequer imaginar que o cavalo batizado Caramelo tenha usado uma escada, para fugir à fúria das águas do rio Guaíba. É fato porém, que o equino se instalou naquele lugar improvável, até ser resgatado. Não foi, portanto, totalmente desmentida a hipótese por longo período mantida pelo célebre colunista social Ibrahim Sued – cavalo não sobe escada. Todo o Brasil pode condoer-se da situação de Caramelo. O olhar do bicho, pousado sobre as águas barrentas, despertou em cada telespectador uma espécie nova de solidariedade. Quem sabe até, acrescentando uma dúvida no espírito dos que ainda preferem a Vida á morte, o Amor ao ódio. O número e o porte do ser vivo é capaz de influenciar conceitos e desafiar sentimentos. Não sei se cães e cavalos são capazes disso, embora admita que ambas as espécies, caninos e muares um dia terão cumprido a caminhada que nos trouxe dos chimpanzés. Muitos cães foram salvos das enchentes, quase todos os dias em que já dura a tragédia gaúcha. Aqui, uma primeira diferença: o sofrimento individual move e comove mais que a tragédia coletiva. A outra, o tamanho do ser vivo parece tornar mais aparentes os riscos que ele corre. No reino vegetal, a sabedoria popular timbrou sentença raramente contrariada: maior o pau maior a queda. Hospitalizado, o cavalo já ganhou a simpatia dos brasileiros. Algo que nem todos merecem.

Autor Professor Seráfico
Publicado: 12/05/2024

Poeta e cientista.

De Tetsuo Yamane (1931-2022) ouvi algo que me marcou a Vida. Dita em uma solenidade de recepção a novos membros da Academia Brasileira de Ciências, a frase me tem acompanhado e sei que será levada comigo, para sempre. Se a proferisse um artista ou um dos chamados homens de letras, estou certo de que o impacto seria menor. Mas Tetsuo Yamane era um biólogo. Mais que isso – e a frase o diz sem precisar de mais letras -, ele foi um humanista. Dos de melhor cepa! Disse o biólogo e a terão ouvido os que estavam no auditório do INPA, naquela feliz oportunidade: Ciência e Arte buscam o mesmo objetivo – a Beleza! Pus-me a pensar sobre as palavras ditas por aquele sábio homem. Então, veio-me à memória a expressão de um colega dele, o biólogo-compositor-boêmio Paulo Vanzolini (1924-2013). Eis como Vanzolini disse, em seu imortal Samba Erudito:

 

Andei sobre as águas

Como São Pedro

Como Santos Dumont

Fui aos ares sem medo

 

Fui ao fundo do mar

Como o velho Picard

Só pra me exibir

Só pra te impressionar

 

Fiz uma poesia

Como Olavo Bilac

Soltei filipeta

Pra te dar um Cadillac

 

Mas você nem ligou

Para tanta proeza

Põe um preço tão alto

Na sua beleza

 

E então, como Churchill

Eu tentei outra vez

Você foi demais

Pra paciência do inglês

 

Aí, me curvei

Ante a força dos fatos

Lavei minhas mãos

Como Pôncio Pilatos

 

A vida de um biólogo que merece ser chamada Vida. Não são muitos. Um homem realmente Homem.

Autor Professor Seráfico
Publicado: 05/05/2024

Foi bonita a festa...

...pá! Como teria sido a nossa, depois da longa noite que durou 21 anos.

O exemplo da antiga metrópole não prosperou abaixo da linha do Equador.

 

Baionetas não fazem melhor que cravos. Desde que os cravos não pendurem na cruz.

 

Nem o pau-de-arara se torne o instrumento oficializado.

 

Não se lembra o cheiro de alecrim, quando e onde o cheiro de sangue atrai.

 

Viva o 25 de abril português!

 

Viva o poeta que sabe e vive o nosso cotidiano.

 

E quanto roda viva a vivaz roda da Vida!

Publicado em 28.04.2024

Os outros

Esperta como poucas da mesma idade, a menina não chegara aos três anos, e surpreendia os adultos. As crianças mais velhas também não escondem a surpresa, sempre que observam o desembaraço da pequena. Talvez os pais e a avó, pela convivência diária, se dessem menos conta do à vontade em que a filha e neta sempre se encontra.

 

Esse tipo de aproximação às vezes impede a exata percepção do observador. A normalidade e o cotidiano não favorecem a apreensão mais adequada da realidade. Mesmo o crescimento dos seres humanos se deixa obscurecer em meio à rotina.

As pessoas menos próximas daquela garota ou quem raramente a encontra tinham mais e melhores condições de observá-las. É-lhes mais fácil comparar a pequerrucha com outras de sua idade.

 

A surpresa, portanto, era quase sempre esperada. A menina, mesmo em ambiente familiar ampliado, sempre se mostrou perfeitamente desembaraçada. Quase sempre, em meio a dezenas de pessoas da família, devolve as perguntas como resposta às interrogações com que a desafiam. Nem faltaram vezes em que ela desconcertara avós, tios e primos mais velhos. Respondendo a uma pergunta eventualmente provocadora ou perguntando, ela mesma, algo embaraçador.

 

O interlocutor adulto balança nos alicerces. Foi demais!...

 

Naquele dia a que se refere este relato, a garotinha foi muito mais longe do que já fora. Aberta a porta da casa onde com frequência a família numerosa se reúne, antes de qualquer outra coisa e à constatação de que ali havia umas poucas pessoas apenas, ela disse, do alto de seu desembaraço e sua capacidade de observação: e os outros?

 

E a avó e a tia presentes não puderam esconder a surpresa.

 

Gargalharam.

 

É assim Maria Virgínia.

Publicação 21.04. 2024  

Vida que nunca encontra a morte

Dentre o abundante noticiário feito em torno do chamado Dia Internacional da Mulher, encontro matéria que me chamou a atenção, mais que todas as outras. Refere-se ela à trajetória de uma jovem recentemente aprovada no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Se é possível ainda hoje a ressurreição, seria pecado mortal ignorar a vida da menina que até os 9 anos de idade morou em um cemitério. Lá, onde são sepultados os mortos, ela não se deixou matar pelo desânimo, nem enterrou seus sonhos. Ao contrário, a jovem advogada enfrentou a expulsão do local em que morava com sua família, como poucas o teriam feito. Deixou para trás aquele ambiente cujas construções, capelas, lápides, sepulturas humildes eram parte de suas brincadeiras de menina. Manja, esconde-esconde e outras formas de viver a vida, mesmo se entre milhares de mortos. Aluna de colégio de tempo integral, a defunta (como a apelidaram os colegas do estabelecimento militar) casou-se aos 17 anos. Mas não esqueceu a promessa feita à mãe, de que sua vingança às condições precárias em que passaram a viver, após a expulsão do chamado campo santo – seria dar-lhe uma vida menos dura, sobretudo uma Vida cercada de outras vidas. Agora, Viviane de Souza Monteiro, 27 anos e dois filhos, ingressa na atividade e no ambiente que tem como dever precípuo o de concretizar a Justiça. Em todos os seus matizes. E será uma das que, como tantas outras mulheres, se empenhará a fazer do Direito o mais legítimo caminho para a Justiça. É o que se pode esperar de quem transforma a morte alheia na vontade de cultuar e cultivar a Vida. Dela e de seus semelhantes.

Um pelo outro.5

O incômodo não vinha da confusão entre ele e outro dos seus contemporâneos. Afinal, o homem sabia das semelhanças que induziam ao equívoco de terceiros. Refiro-me à fisionomia, à aparência, aquilo que assalta os olhos do mais distraído observador. Havia outras convergências a alimentar e revigorar a confusão. Um e outro eram autores de livros. Ambos exercitavam o magistério. Não era a mesma a frequência com que os dois apareciam no noticiário ou percorriam o País, para serem ouvidos por plateias ainda interessadas nas coisas do espírito. Livros, valores éticos, interpretações da Vida, do Mundo e de suas gentes. Um, autor consagrado, habitava a metrópole; o outro não passava de um autor provinciano, de quando em quando chamado – não a ensinar – a dar palpite por dá cá aquela palha. A frequência com que este era tomado por aquele já sugeria não ser o segundo mais que mero plágio do primeiro. Um plágio produzido a distância. De qualquer maneira, não lhe restara outro ou qualquer traço de originalidade. Onde quer que o segundo homem fosse, lá ele sempre encontraria alguém ansioso por tocar-lhe as mãos; cumprimentá-lo. Dizer-lhe da admiração pelo que escrevia. Louvar suas últimas obras. Houve oportunidade em que, caída a ficha, ele desfez o pequeno grupo familiar (o casal e duas filhas adolescentes) que se preparava para documentar com imagem o inesperado, e tão ansiado encontro. Não, não sou eu a pessoa com quem vocês gostariam de ser fotografados. Mais não disse, interessado em que estava o homem-plágio de ver-se livre mais uma vez de constrangimento que se ia tornando corriqueiro. Incômodo, algumas vezes. Como aquela, em que os olhares de um casal estranho se estenderam do salão de embarque do aeroporto de origem até uma cidade distante milhares de quilômetros dali. Parecia uma perseguição, como a temos visto em tantos filmes de ação e violência. Frustrada a abordagem no ponto inicial da viagem, o casal cuidou para não perder de vista o objeto de sua curiosidade. Se não era mais que isso. Quando anunciado o transbordo para outro avião em ponto intermediário do voo, os cuidados dos observadores foram redobrados. Conseguiram parar em lugar de passagem obrigatória do plagiador involuntário. Só lá, um sorriso que quase não cabia no rosto da mulher e do seu acompanhante, lograram indagar: o senhor não é o professor Fulano de Tal? A resposta não poderia ter sido mais rápida – e frustrante: não! Há um engano. O quanto bastou para o resto da viagem eventualmente colocar dois olhares furiosos dos confusos passageiros sobre a causa de sua frustração. Não terá sido a primeira, sequer a última, oportunidade em que fato semelhante aconteceu. Houve momento em que a abordagem foi mais fácil, direta e inevitável. E o homem-plágio ouviu: O senhor não é o escritor? Mentir talvez dissipasse logo a dúvida dos interessados. Por que mentir? Sim, também escrevo. Imediatamente a mão do interlocutor estendeu-se em direção à mão do perplexo escritor de província. Acompanhava o gesto de cordialidade a frase constrangedora: Muito prazer, professor Içami Tiba. O prazer de conhecer a admiradora e os familiares que se preparavam para também saudar o objeto da admiração não autorizava mais uma vez a mentira. Não sou o professor Içami Tiba, mas não se preocupem, estou acostumado a esse equívoco. Começo até a perder a noção de quem eu de fato sou.

Uma lição de compaixão.4

Eu não saberia dizer se era uma criança, uma adolescente ou, mesmo, uma jovem adulta do sexo feminino, aparência difícil de definir a idade. O mal de que é portadora fazia-a ora correr pelos espaços entre as araras que sustentavam as peças de roupa. Com movimentos ligeiros, as mãos trêmulas apanhavam alguma dessas peças e levavam à mulher de meia idade atendida por uma das vendedoras. O som que saía da boca daquela pessoa jovem atestava existir nela enfermidade capaz de inclui-la no rol dos portadores de algum tipo de deficiência. Via-se logo, pois a aparência o dizia, não se tratar de uma portadora de doença de Dawn. Não tem os olhos rasgados, nem na face se destacam outros sinais dessa doença. Os corredores do estabelecimento eram percorridos por ela, repetidamente, com passos largos ou às carreiras, em velocidade diferente, a cada vez. Os braços, como apêndices soltos, sacudiam em movimentos aparentemente descontrolados.  Nem os gritos dela chamavam a atenção dos poucos clientes atendidos pelos vendedores. Estes não pareciam incomodados com a perambulação da moça(?), nem se percebia em qualquer dos presentes, fosse uma vendedora, fosse um outro funcionário da loja ou se tratasse de um dos clientes, qualquer sinal de aborrecimento ou desagrado. Não era isso, porém, o que mais chamava a atenção de quem dirigisse seu olhar para outro ponto que não fossem as vitrines, as araras ou as mesas em que as mercadorias estavam dispostas. Eram poucos os consumidores, já foi dito. Também eram poucos, pelos menos os vendedores dispensando a atenção e a gentileza postiças com que tratam a clientela. Dos outros funcionários, a presença perceptível era apenas a do segurança, postado à porta do prédio. Uma só pessoa atraia a atenção do observador. Dele não se poderia dizer ser o marido, o pai ou o irmão da moça que corria, apanhava alguma peça e a entregava à outra mulher. Alto, porte atlético, trajado com elegância extremamente simples, o homem acompanhava a corrida da moça(?). Ela corria; ele parecia contar os próprios passos – vagarosos, firmes, elegantes também. Furtivamente, os cantos de seus olhos percorriam o amplo salão dividido pelas araras e mesas onde repousavam as mercadorias. Uma vez que outra, dirigia a palavra (à moça?). Essa você já levou. Quem sabe ela gostaria de experimentar esta outra? Foi uma das frases com que o homem se dirigiu a ela. Outras ele terá dito, com iguais serenidade e delicadeza, mas não foi possível registrá-las. A compreensão do problema de saúde da acompanhante saltava aos olhos do observador ou de quem se dispusesse a apreciar as pequenas tanto quanto as grandes coisas da vida. Filha, irmã ou qual seja o grau de parentesco com o homem, valeu aprender uma das maiores lições de compaixão até aqui assistidas. Não havia um só indício de que o homem se perturbava com o mal que faz da outra uma pessoa diferente. Ele apenas revelava quanto pode a sociedade humana ser melhor do que se mostra. E quanto somos negligentes e impacientes, diante de males às vezes muito menos graves. No mundo e nas ruas está a melhor escola que se possa frequentar. Dá quase alegria invejar uma pessoa como aquele – pai? Irmão? O que importa, mais que o sentimento transparente de um homem, no salão de vendas? Creio que é a isso que se chama compaixão.

Empáfia

A mulher nem se deu o trabalho de desatar o cinto de segurança. O condutor do carro à frente, abalroado, dispôs-se a ir até ela. Com flagrante má vontade, a condutora do outro veículo baixou o vidro. Seu olhar desdenhoso mostrou em que altura econômica e social ela está pousada. Ou pensa que. De qualquer forma, gerou surpresa no interlocutor. À pergunta – e agora, minha senhora, como é que fica? – nada menos que uma tentativa de resolver o problema em comum acordo, a resposta levou a vítima do choque à perplexidade. Puta que pariu foi o que disse a mulher, do alto de sua empáfia. Não entendo sua linguagem, senhora. Aí, começava a escassear calma ao condutor do carro que ia à frente, naquela manhã ensolarada, o trânsito fluindo sem atropelo. Daí o prolongamento da interpelação. Que ambientes anda a senhora frequentando, cuja linguagem é tão pouco educada?  Não foi outra a reação da infratora: Pegue meu cartão de visita. Em seguida, entregou, com o ar desdenhoso antes assumido, o papelucho com o registro do nome e função pública da identificada. Membro do Poder Judiciário, com aquela providência pensou dar por finda sua conduta deseducada, grosseira, ilícita. O interlocutor – pensou lá a mulher com seus botões, se havia algum deles em seu traje caro e de elegância duvidosa – logo desistirá de postular a indenização do dano causado pelo abalroamento. Dele ela ouviu: chamo-me fulano de tal, trabalho em tal lugar. Mal sua interlocutora escondeu a surpresa. Passava ela de caçadora à caça. Fosse qual fosse a razão, o que deve ser dito é que seus modos passaram a ser menos agressivos. Estou me comunicando com meu filho, por telefone. O senhor espere, por favor. (O celular à mão comprovava a mudança de comportamento). Ele o procurará, se o senhor fizer o favor de informar o número do seu telefone. E tudo será resolvido. Foi o que bastou para provocar as despedidas. Aguardarei a chamada de seu filho. Também penso que isso facilitará uma solução justa para a questão em que, involuntariamente, fui envolvido. Passar bem... Chegado ao local de trabalho, o condutor do carro que trafegava na frente providenciou resposta ao telefonema recebido em sua ausência. E o filho da magistrada revelou discernimento e maturidade de que sua mãe fora incapaz. Não demorou mais que uma semana, até que o veículo danificado voltasse às condições anteriores ao incidente (porque a ocorrência não passou disso, além do palavreado chulo). Com a penosa circunstância do uso de veículo alugado, usado no seu dia-a-dia, até que a concessionária entregasse o carro, totalmente recuperado. Tudo, às expensas da pretensa dona do Mundo.

Duas frases, duas lições

Uma não tinha mais que quatro palavras; a outra continha cinco. Um dos garotos não teria mais que nove anos. Sete era quanto o outro contava. Os locais não poderiam ter sido mais díspares – à entrada de uma livraria estava o segundo dos meninos. O outro esperava com sua mãe o atendimento da neuropediatra. O menor, sentado em pequena cadeira das quatro arrumadas em torno de mesinha quadrada, aguardava o pai. Este visitava com calma todas as fileiras de estantes. Um leitor que faz a alegria dos que escrevem. O maior estava no consultório, pelas dificuldades que vinha encontrando, no processo de aprendizagem. Com essas palavras a mãe justificou a presença dela ali. De comum às duas cenas, portanto, apenas o observador. Que se tornou aluno e teve como professores duas crianças. Talvez se possa dizer comum uma outra circunstância. Cada um deles fazia-se acompanhar de um dos pais. O garoto de sete anos presumíveis saíra na manhã daquele sábado com o pai-leitor. A mãe, em uma tarde qualquer, levava o filho em busca de melhorar-lhe o desempenho escolar. O adulto observador chegado, mal entrara na livraria, avistou a criança. O enfado transparecia no rosto infantil. Seu desagrado não correspondia ao sorriso silencioso com que o pai pagava aos olhos a felicidade de topar com alguma obra logo após retida em suas mãos. É certo que sairia dali com alguns exemplares. Uma das vantagens oferecidas pelo estabelecimento era o pagamento parcelado. A mãe mal escondia seu desconforto. Não lhe parecia agradável recorrer à neuropediatra, mas não encontrara outra maneira de resolver o que lhe parecia grave problema. O filho era lento no aprender. Números não eram objeto de sua admiração, se não lhe causavam certa ojeriza. À pergunta recorrente (qual o melhor amigo do homem?), ambos os meninos responderam de forma tão diferente – e tão igual. Isso mesmo: diferentes na aparência, a reação das crianças tinha algo que nem todos os professores (o interrogador inclusive) apreendem quando e quanto necessário. Nos dois casos, o interrogatório começou com a pergunta, a que logo se seguiram outras. A resposta a todas elas, de um e do outro, não foi mais que o silêncio. E certo olhar de desdém dos interrogados. Na inocência própria da infância. O pai pegou o filho pela mão e o levou à porta da livraria. Antes que pai e filho transpusessem a soleira da entrada, a resposta que parecia pronta e guardada como a arma que se esconde até a hora do disparo, saiu firme: mas ele não é vivo! À mãe do outro menino ocorreu de ficar um pouco perplexa com a reação do filho. Mas o gato interage comigo. Foi tudo o quanto ele disse ao interrogador. O fato de cão e gato fazerem ruídos desagradáveis; exigirem trato especial em consultórios veterinários; ameaçarem sujar limpas roupas com suas patas nem sempre bem-educadas – nada disso pesou na consciência dos dois pirralhos. Com simples e profundas frases, eles falaram da Vida. E abriram para o interlocutor as luzes que iluminaram a partir daí sua percepção do Mundo.

Vontade e instinto

Não sei como o minúsculo pássaro entrou ali. Talvez tenha perdido o rumo e passou pelo primeiro espaço aberto diante de seus olhos. O fato é que o encontrei perdido. Ele, que parece conhecer e dominar todo o espaço aéreo, agora batia as asinhas mais aceleradas. Quando meus olhos deram conta de sua presença, ele repousava sobre o fio da luminária que pendia do teto e sustentava a lâmpada, a luz derramada sobre pequena e redonda mesa de madeira. Parecia o trapezista de O circo dos horrores, que Burt Lancaster tão bem representou. (Ou terá sido Trapézio, Carol Reed,  1956?). Compreendi que o beija-flor nem sabia do ator, muito menos de que Gina Lollobrogida era sua companheira na aventura circense. Intuí: o pequenino animal pousava por segundos, no único apoio encontrado para compensar o esforço por encontrar uma porta de saída. Pensei em orientar sua fuga, ele feito refém de pessoa alguma. Fora ali não por sua própria vontade – se o leitor me entende. Suponho que ele, o leitor, não o animalzinho alado, também não crê na possibilidade que um outro animal que não o homem, tenha também vontade. Nem isso vem muito ao caso ou à história que sobre ele se pode escrever. Fosse outro o observador, é quase certo que encontraria jeito melhor de ajudar o beija-flor. Não ocorreria ao humano condoído de apanhar uma vassoura, na ingênua hipótese de com ela ajudar o refém com asas cansadas. E o espaço era tão pequeno. Felizmente, valeu desistir de dar ajuda ao que dela não precisava. Ao voltar à sala, recolocada a vassoura em seu lugar de repouso, o instinto do beija-flor já o livrara da situação constrangedora. Convenci-me, então, de que nem sempre a vontade é mais eficaz que o instinto.
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